Medo de ter a sorologia exposta por profissionais de saúde freia o tratamento de HIV no Brasil

Pesquisa em sete capitais aponta preconceito em serviços de saúde, no trabalho e no meio familiar, agravado por marcadores sociais como raça, gênero e orientação sexual

Image description

Um estudo inédito, divulgado nesta semana, revela que mais da metade das pessoas vivendo com HIV no Brasil já sofreu algum tipo de discriminação ao longo da vida em razão de sua sorologia. Segundo o Índice de Estigma 2024 — pesquisa realizada em sete capitais brasileiras (Manaus, Salvador, Recife, Brasília, Rio de Janeiro, São Paulo e Porto Alegre) pela Rede Nacional de Pessoas Vivendo com HIV (RNP+), com apoio do UNAIDS, Fiocruz e Ministério da Saúde —, 52,9% dos 1.275 entrevistados relataram ao menos um episódio de preconceito ou exclusão.

O levantamento expõe um panorama alarmante. Quase 40% dos entrevistados (38,8%) afirmaram ter sido alvo de fofocas ou comentários discriminatórios vindos de pessoas de fora do convívio familiar, enquanto 34,8% sofreram episódios semelhantes dentro de casa. Violência física foi apontada por 7,4% e assédio sexual, por 6%. No campo da saúde mental, 68,4% apresentaram sintomas de ansiedade ou depressão — 41,2% chegaram a ser diagnosticados com ansiedade, e 29,1% com depressão.

No ambiente de trabalho, relatos de constrangimento não são raros. “No meu emprego anterior, começaram a me mudar de setor quando descobriram minha sorologia. Fui exposto em um grupo de mensagens, dizendo que ‘contaminava carnes’. Me senti sem chão”, descreveu um homem cisgênero de 32 anos, morador de Manaus. Na assistência médica, 11,5% dos entrevistados declararam ter sofrido discriminação em serviços especializados em HIV, e 13,1% em outros atendimentos.

O estudo também destaca desigualdades cruzadas que potencializam o sofrimento de grupos ainda mais vulneráveis. Entre pessoas negras, 38,9% relataram discriminação racial associada ao HIV, e 29,8% sofreram assédio verbal. Na população trans e travesti, esse índice chega a 85,7% — maioria que vivencia exclusão familiar ou violência motivada por identidade de gênero. Profissionais do sexo, por sua vez, reportaram 73% de assédio sexual e 60,8% de agressão física. “Ser mulher preta com HIV triplica a vulnerabilidade. É um desafio buscar saúde sem ser maltratada”, desabafou uma participante de 37 anos, em Recife.

As barreiras no acesso à testagem e ao tratamento também são preocupantes. Quase uma em cada cinco pessoas (19,7%) não teve autonomia para decidir fazer o teste de HIV, e cerca de 50% atrasaram o início do tratamento por medo do preconceito. A confidencialidade dos prontuários médicos está em xeque para 46,1% dos entrevistados, e 18,7% deixaram de tomar doses de antirretrovirais para não correr o risco de terem sua sorologia revelada.

O cenário se agrava em contextos de crise. Durante a pandemia de Covid-19, 44,3% dos participantes tiveram redução de renda, e 28,8% ainda não recuperaram o nível anterior de ganhos; 34,7% viram consultas e tratamentos cancelados. Eventos climáticos extremos, como enchentes e secas — que afetaram 12,7% dos entrevistados — também dificultaram o acesso a serviços de saúde, segundo 45,2% dos afetados. “Na enchente, fui para um abrigo, mas disseram que ‘traveco não podia ficar lá’. Perdi tudo”, relatou uma travesti de 38 anos em Porto Alegre.

Realizado pela segunda vez no país — a edição anterior ocorreu em 2019 —, o Índice de Estigma 2.0 aplicou questionários conduzidos por pessoas que vivem com HIV, seguindo os princípios GIPA (maior envolvimento de pessoas com HIV). A amostra, de caráter não probabilístico, contemplou diversidade racial, etária, de gênero e orientação sexual. Além da RNP+, participaram organizações como Gestos, MNCP, RNAJVHA e Fiocruz.

Os resultados reforçam a urgência de políticas públicas antirracistas e LGBTIA+. Para pesquisadores, é fundamental combater a desinformação, capacitar profissionais de saúde e assegurar que emergências sanitárias e ambientais não aprofundem as desigualdades. “Mudou muita coisa desde os anos 1990, mas o estigma ainda nos mata silenciosamente”, concluiu uma mulher trans de Recife.

Para acesso ao relatório completo e recomendações detalhadas, clique aqui “Índice de Estigma em relação às pessoas vivendo com HIV/AIDS no Brasil – 2024”, coordenado por RNP+, UNAIDS e parceiros.