Pesquisa inédita liderada por farmacêutica revela benefícios de canabinóides para Parkinson
Estudo aponta melhora nos sintomas e investiga efeitos também para Alzheimer, TEA, Fibromialgia e Esclerose Múltipla

Um estudo brasileiro, inédito no mundo, pode mudar aplicações, diretrizes e a realidade de milhares de pacientes e comunidade clínica, no que diz respeito ao tratamento dos sintomas da Doença de Parkinson a partir da maconha (Cannabis sativa). Liderado pela farmacêutica Ana Carolina Ruver Martins, doutora em farmacologia e pós-doutoranda na Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), o trabalho "Efeitos da associação dos canabinóides THC e CBD sobre os sintomas motores e não motores da doença de Parkinson: um ensaio clínico, duplo-cego, randomizado e controlado por placebo", foi realizado no Laboratório Experimental de Doenças Neurodegenerativas (LEXDON).
Dra. Ana Carolina Ruver Martins
Utilizando metodologia rigorosa, foram analisados os efeitos de uma combinação específica de THC (Tetrahidrocanabinol) e CBD (Canabidiol) - dois dos principais compostos canabinóides encontrados na planta, no tratamento dos sintomas clínicos do Parkinson em 68 participantes, acompanhados durante seis meses. A forma como o estudo foi conduzido, permitiu avaliar, com precisão, a eficácia e segurança do uso da Cannabis sativa por longo prazo nos pacientes, estabelecendo um novo patamar na investigação científica sobre o tema.
Em todo o mundo, aproximadamente 10 estudos publicados abordam o uso de canabinóides no controle dos sintomas da Doença de Parkinson. Por isso, ainda faltam dados, amostras, pacientes e tempo de pesquisa suficientes para conclusões efetivas sobre benefícios e efeitos adversos do princípio ativo. Ana Ruver explica que os estudos existentes consideram um número reduzido de participantes, além de não especificarem as dosagens utilizadas e a aplicação de cannabis sem padronização, como extratos e inalação.
A investigação brasileira cumpre todos os requisitos das leis nacionais, atendendo à Declaração de Helsinki, às normas de boas práticas clínicas e às diretrizes da Conferência Internacional de Harmonização: utilizou uma formulação oral padronizada, testada contra placebo ao longo de 180 dias em portadores da doença em estágios iniciais a moderados (até estágio 3 na escala de Hoehn e Yahr). Ana Carolina Ruver destaca que o objetivo foi garantir dados confiáveis e uma base científica sólida. “Até então, poucos estudos clínicos controlados haviam explorado o uso de canabinóides para Parkinson, e nosso objetivo foi mudar esse cenário, fornecendo dados sólidos e confiáveis para a comunidade científica”, explica.
A pesquisa foi realizada sob a orientação do Doutor em Farmacologia UFSC, Rui Prediger. Ele afirma que, apesar de médicos prescreverem canabidiol, há poucos estudos clínicos controlados sobre sua eficácia na doença, o que motivou a análise. “Outro diferencial desse estudo está no uso combinado de THC e CBD, baseado em pesquisas anteriores que indicaram eficácia limitada do CBD isolado”, explica.
A metodologia empregada é validada pela comunidade científica e se chama ‘duplo-cego’, o que significa que nem os pacientes, tampouco os pesquisadores, sabiam quem estava recebendo o tratamento com CBD:THC e quem estava no grupo placebo. Esse tipo de procedimento é amplamente utilizado em pesquisas para evitar viés e garantir que os efeitos observados sejam realmente causados pela substância testada, e não por expectativas de pacientes, pesquisadores ou outros fatores e interesses externos.
O orientador ressalta que a adoção de uma metodologia rigorosa evita vieses e assegura resultados mais confiáveis, garantindo a imparcialidade na análise. “Seguimos o modelo duplo-cego e a randomização, feita por software, que assegura a distribuição equilibrada entre os grupos, considerando fatores como sexo e estágio da doença. O controle por placebo permite avaliar possíveis respostas subjetivas, não diretamente relacionadas ao tratamento”, afirma Rui Prediger.
Os 68 pacientes foram testados por seis meses e divididos em dois grupos, onde um grupo recebeu uma dosagem do composto (líquido) de CBD:THC, e o outro recebeu o composto neutro (placebo). “Avaliamos as melhorias dos sintomas motores e não motores da doença, e a qualidade de vida e os níveis sanguíneos do fator neurotrófico derivado do cérebro (BDNF) em pacientes com DP, após a ingestão dos canabinóides”, explica a pesquisadora.
Resultados, legislação e avanços
O estudo revelou que os pacientes que receberam o tratamento perceberam melhoras motoras mais rápidas do que o grupo placebo. Além disso, as mulheres responderam melhor em aspectos como gravidade da doença, flexibilidade e qualidade do sono. Os resultados indicam que os canabinóides podem ter potencial terapêutico, entretanto mais estudos são necessários para determinar a melhor dosagem e os efeitos a longo prazo.
Para a Dra. Ana, a pesquisa pode abrir caminho para novos tratamentos e pesquisas, uma vez que os dados obtidos servem como base para outros estudos, e reforçam o potencial dos canabinoides no combate aos sintomas da DP, mas também na evolução da legislação brasileira sobre o uso medicinal dos canabinóides.
“Especialmente no contexto das normas da Anvisa, como a RDC 327/2019, que regula a fabricação, importação e comercialização de produtos à base de cannabis no Brasil, os achados podem influenciar revisões regulatórias, incentivando a flexibilização das RDCs vigentes para facilitar a pesquisa clínica, o registro de novos produtos e a ampliação da oferta no SUS, garantindo mais segurança e eficácia no uso medicinal da cannabis”, afirma a farmacêutica.
O Laboratório Experimental de Doenças Neurodegenerativas da UFSC estuda há 18 anos as alterações precoces da Doença de Parkinson e possíveis novos tratamentos. “Acredito que este estudo ampliará o conhecimento sobre essas alterações, abrindo caminho para o desenvolvimento de novas terapias, incluindo o uso de canabinóides”, ressalta.
Os pesquisadores celebram os resultados e continuam evoluindo as pesquisas sobre os efeitos da cannabis na DP, mas também em outras doenças, como o Alzheimer, o Transtorno do Espectro Autista (TEA), a Esclerose Múltipla (EM) e a Fibromialgia. “O uso da cannabis medicinal é poderosíssimo, e se a nossa sociedade retirar os tabus e preconceitos, todos ganham com os estudos e aplicações medicinais avançadas”, conclui.
O trabalho está em avaliação para ser publicado em revistas científicas internacionais.
Doença de Parkinson
A doença de Parkinson é uma condição neurodegenerativa caracterizada pela degradação progressiva dos neurônios dopaminérgicos, estruturas do cérebro humano responsáveis pela liberação de dopamina - neurotransmissor essencial para controlar a coordenação motora e outras funções cerebrais.
Quando esses neurônios começam a se degenerar, os níveis de dopamina diminuem, resultando em sintomas físicos como: tremores, rigidez muscular e dificuldades para se movimentar. Pode ainda surgir alterações cognitivas, depressão, distúrbios do sono e dor crônica, impactando significativamente a qualidade e na redução da expectativa de vida, levando ao óbito em estágios avançados. Com a progressão do Parkinson, problemas como dificuldade para engolir (disfagia), infecções respiratórias, quedas frequentes e complicações cardiovasculares tornam-se mais comuns e podem ser fatais.
De acordo com dados da Organização Mundial da Saúde (OMS) de 2024, existem aproximadamente 4 milhões de pessoas com Parkinson no mundo, o que representa 1% da população mundial com 65 anos ou mais. No Brasil, calcula-se que 200 mil indivíduos sofram com a doença.
Mercado de cannabis
De acordo com a empresa especializada em inteligência de mercado no setor de cannabis, Kaya Mind, os dados da Anvisa indicam que o Brasil tem 219 mil pacientes que importam medicamentos à base de cannabis, enquanto 114 mil (26%) utilizam tratamentos via associações e 97 mil (22%) compram esses produtos em farmácias. O Sistema Único de Saúde (SUS) também oferece alguns desses remédios, com um gasto estimado de R$80 milhões em 2023.
Os dados mercadológicos projetam que o mercado da cannabis medicinal pode ter ultrapassado R$1 bilhão em 2024. Caso haja regulamentação para uso medicinal, industrial e outros, o setor pode movimentar R$26,1 bilhões até 2027.
A soma destes fatores, faz com que a pesquisadora acredita ser fundamental a quebra de tabus sobre o uso medicinal da cannabis. “Ainda há muito preconceito, mas acredito que estamos no caminho certo. É gratificante ver como o canabinóide pode ajudar quando utilizado de maneira adequada”, celebra a farmacêutica.