Farmacêutico quilombola recebe prêmio da Fundação Bunge 2025
Ygor Jessé Ramos se destacou pela trajetória que valoriza os saberes e práticas dos povos tradicionais e sua importância para a conservação dos recursos naturais

O farmacêutico Ygor Jessé Ramos é um testemunho de paixão pela ciência e compromisso com as raízes culturais. Nascido no quilombo do Acupe, no distrito de Santo Amaro, a pouco mais de 90km de Salvador (BA), Ygor trilhou um caminho singular, unindo o conhecimento ancestral de seu povo à excelência acadêmica. Essa trajetória lhe rendeu o Prêmio Fundação Bunge 2025, na categoria Juventude, para o tema “Saberes e práticas dos povos tradicionais e sua importância para a conservação dos recursos naturais”.
Aos 34 anos, Ygor Jessé Ramos mostra que é possível trilhar um caminho na academia sem abrir mão de suas raízes, unindo educação, ciência e conhecimentos tradicionais para construir um futuro mais justo e sustentável. “Eu nunca imaginei estar neste lugar que ocupo hoje”, confessa. “Espero que isso não aconteça mais. Que, a cada dia, outras pessoas das periferias consigam se imaginar e ocupar esse lugar”.
Desde cedo, a vida de Ygor foi marcada pela conexão com a terra e as tradições. Filho de um pescador carpinteiro e de uma produtora de dendê, cresceu em meio à rica cultura de uma comunidade remanescente de quilombo que resiste, até hoje, por meio da pesca e da agricultura. Essa vivência despertou nele um profundo interesse pelas plantas e seus usos, que se fortaleceriam em sua futura carreira como farmacêutico pesquisador.
A mudança para Salvador, onde cursou o Ensino Fundamental e Médio em escolas públicas, representou um novo capítulo na vida de Ygor. O incentivo de um professor de biologia o despertou para a ciência, enquanto sua mãe o sugeriu que cursasse Farmácia, por ser, na visão da matriarca, uma profissão de grande valia. Aos 16 anos, em seu segundo ano prestando vestibular, Ygor ingressou na Faculdade de Farmácia da Universidade Federal da Bahia (UFBA).
Logo no primeiro dia da graduação, o jovem se tornou estagiário voluntário de três professores: Eudes Veloso, Neila de Paula Pereira e Mara Zélia de Almeida. Essa última liderava os estudos do Laboratório Farmácia da Terra (FARTERRA/UFBA), que desenvolvia atividades de pesquisa e extensão com plantas medicinais em comunidades tradicionais e terreiros de candomblé. Isso levou Ygor a se aproximar ainda mais de suas raízes, permitindo-o mergulhar nos estudos da etnofarmácia, etnofarmacologia e etnobotânica, ao mesmo tempo em que conectava esses conhecimentos científicos à sabedoria ancestral dos povos desses territórios.
Foram três anos atuando voluntariamente com a professora Mara Zélia, até que, no quarto ano da graduação, ela criou um projeto para a implantação da Fitoterapia nos atendimentos do Sistema Único de Saúde (SUS) no quilombo de São Francisco do Conde, e convidou Ygor para apoiá-la, desta vez com bolsa de estudos. “Começamos a fazer entrevistas com os centenários do quilombo, depois com pessoas de 70 anos, depois com conhecedores das áreas, para, aí sim, processar os dados e incluir o uso das plantas medicinais no SUS”, conta Ygor.
Após a experiência com pesquisas na universidade, Ygor decidiu, em seu último ano de graduação, estagiar na indústria. Foi essa busca por novos desafios que o levou ao Rio de Janeiro, onde estagiou no Laboratório Tecnologia Farmacêutica do Instituto de Tecnologia em Fármacos (UERJ/Farmanguinhos - FIOCRUZ). Nos anos seguintes, cursou mestrado e doutorado também na UERJ/Farmanguinhos - FIOCRUZ, em Biologia Vegetal.
A pesquisa de Ygor se aprofundou no estudo das plantas utilizadas em rituais afro-brasileiros, buscando compreender a relação entre o uso tradicional e as propriedades químicas das plantas. "Ela [Profa. Mara Zélia] disse para eu trabalhar com planta de macumba", relembra o pesquisador, sobre um momento crucial em sua pesquisa, "e percebi que existiam falhas em relação ao uso tradicional e na temporalidade, do tempo de uso das plantas. Existe a sazonalidade, já sabíamos disso, mas nunca fomos avaliar se realmente os critérios são claros, ou se existem padrões de mudanças espaciais”.
Durante o mestrado e o doutorado, Ygor aprofundou seus estudos nas variações químicas das plantas. “Eu buscava entender os critérios de uso das comunidades e verificava se existia alguma resposta relacionada a esses critérios. E vimos que existiam mudanças clínicas, que chamamos de plasticidade fenotípica química, que respeitam os critérios tradicionais de uso. Por exemplo: se minha avó dizia que de manhã era o melhor horário para coletar a planta, nós mostramos que a química nesse horário tem alguns fatores que levam a essa resposta biológica”, explica.
De volta à Bahia, o pesquisador assumiu o cargo de Professor Adjunto no mesmo curso onde iniciou sua trajetória acadêmica: a Faculdade de Farmácia da UFBA. Lá, orienta jovens talentos e desenvolve projetos de pesquisa inovadores, tanto no Laboratório Farmácia da Terra (FARTERRA) como no Laboratório de Pesquisas de Produtos Naturais (LPPN), mantendo o foco da valorização dos saberes tradicionais e da promoção do uso sustentável dos recursos naturais.
Um dos projetos de destaque liderados por Ygor na UFBA é o "Chá Ancestral", uma iniciativa desenvolvida em Acupe, sua comunidade, que une a tradição terapêutica dos chás ao caráter social e comunicativo da cultura brasileira. A proposta fomenta rodas de conversas sobre o uso seguro e consciente das plantas medicinais tradicionais da Bahia, catalogadas no Memento Fitoterápico Brasileiro, promovendo a troca de saberes e o resgate das práticas medicinais ancestrais. O projeto visa também inserir esses conhecimentos no SUS da região, reduzindo a medicalização excessiva e valorizando o saber tradicional no cuidado com a saúde.
O Professor ainda desenvolve, pela Faculdade de Farmácia, o projeto “FitoBahia Socioprodutiva”, focado no desenvolvimento de bioinsumos a partir de sementes em povos e comunidades tradicionais da Bahia. “É uma iniciativa para fortalecer a Cadeia Socioprodutiva da Chapada Diamantina, beneficiando pequenos produtores de óleos essenciais. Com o projeto, fornecemos aos produtores o apoio necessário para garantir a qualidade de seus produtos, por meio da elaboração de laudos técnicos que atestem suas qualidades mínimas”, conta Ygor. O objetivo é que, com essas certificações em mãos, os agricultores possam vender seus produtos para grandes empresas, gerando renda e promovendo o desenvolvimento sustentável da região.
Por fim, Ygor também conta com um projeto em cannabis, “inclusive com cannabis medicinal, principalmente para trazer qualidade de vida para as pessoas que utilizam essa planta”. Mas seu foco principal é seguir estudando os eventos de plasticidade fenotípica química. “É entender como as plantas respondem ao ambiente, e como esse ambiente pode gerar mudanças químicas, e como isso está relacionado com os critérios tradicionais de uso”.