Análise: O uso abusivo de fentanil é ameaça no Brasil?
“Por aqui, não há indícios de uma epidemia de abuso dessas substâncias e de seus impactos na saúde”
O uso abusivo de fentanil e substâncias análogas tem sido reportado em vários países, e tornou-se uma emergência de saúde pública na América do Norte. Em 2021, os Estados Unidos alcançaram um recorde histórico com mais de 106 mil mortes por overdose, que incluíram drogas ilícitas e opioides prescritos. Destas mortes, mais de 70 mil foram atribuídas aos opioides, principalmente ao fentanil. “Por aqui, não há indícios de uma epidemia de abuso dessas substâncias e de seus impactos na saúde”, atesta o presidente da Sociedade Brasileira de Toxicologia, farmacêutico José Roberto Santin, que também é membro do Grupo de Trabalho sobre toxicologia do Conselho Federal de Farmácia (CFF).
José Roberto Santin baseia sua afirmação em dados do III Levantamento Nacional sobre o Uso de Drogas pela População Brasileira, segundo o qual o uso não prescrito ou o uso de forma diferente da receitada de medicamentos de uso controlado foi declarado por apenas 3% da população pesquisada, entre 12 e 65 anos. “Estamos longe de uma epidemia de opioides, no entanto os órgãos forenses, clínicos e a SBTOX estão vigilantes e monitorando os casos pontuais que são identificados e notificados”, comenta.
O 4º Informe do Subsistema de Alerta Rápido sobre Drogas (SAR), publicado em maio de 2023, aponta que no Brasil, existem relatos nos últimos anos do uso não médico de fentanil, assim como a apreensão dessa substância com o propósito de tráfico para o mercado ilícito. A Polícia Federal registra apreensões relevantes do medicamento citrato de fentanila desde 2009. A mais recente foi em 2019. Por meio da Operação Ampulla, a Polícia Federal prendeu suspeitos de participarem do desvio de fentanil de hospitais para comercialização de traficantes. E em 2023, a Polícia Civil do Espírito Danto apreendeu 31 frascos do anestésico.
Para o também farmacêutico Rafael Lanaro, diretor da SBTOX, membro do GT sobre Toxicologia do CFF e responsável técnico pelo Centro de Informação e Assistência Toxicológica (CIATox) de Campinas (SP), um problema atual é que o fentanil também tem sido encontrado no país em outras formas de apresentação. “Entre essas estão selos semelhantes ao LSD, nos quais o fentanil é misturado com outras substâncias psicoativas, como LSD, cocaína e os canabinoides sintéticos,conhecidos como drogas K”, comenta.
No ano de 2016, um paciente admitido em pronto-atendimento de Campinas relatou ter consumido selo de LSD e álcool, mas apresentava manifestações clínicas típicas da intoxicação por opioides e teve a confirmação da presença de fentanil nas amostras biológicas coletadas pelo Laboratório de Análises Toxicológicas do CIATox local. Em 2022, um jovem encontrado com sérios ferimentos na praia de Guarapari (ES) apresentou resultado positivo para a presença de fentanil no sangue. E mais recentemente, em 2023, o CIATox de Campinas novamente confirmou a presença de fentanil em vítima de golpe “Boa Noite Cinderela”, no qual foram usadas diferentes substâncias, como LSD, cocaína e “K2”, termo popular utilizado com frequência para canabinoides sintéticos.
Outro fator preocupante é o aumento recente e crescente da presença de opioides semelhantes ao fentanil, como Butonitazeno e Metonitazeno, em canabinoides sintéticos ou K2 . “Essas drogas são ainda mais potentes que o fentanil e oferecem maior risco de eventos adversos fatais”, observa. O farmacêutico alerta para um risco adicional. “Na maioria das vezes, o usuário desconhece a presença destas substâncias. Recentemente, dados do projeto Baco realizado pela Universidade de Campinas (Unicamp) demonstraram que 63% das pessoas que consomem drogas em festas e festivais de música pelo Brasil podem não saber com exatidão o que estão usando”, observa.
Diante da emergente ameaça à saúde pública do fentanil e dos opioides em geral, é cada vez mais desafiador o trabalho dos profissionais de saúde diante do uso abusivo dessas substâncias. Um ponto relevante a ser destacado é que os opioides, como o fentanil, têm um antídoto eficaz, a naloxona. Portanto, os serviços de saúde devem estar preparados para lidar com emergências relacionadas ao uso dessas substâncias, garantindo a disponibilidade imediata de naloxona e contando com profissionais de saúde treinados para identificar e tratar casos de intoxicação por opioides. “Neste sentido, o CFF reforça os comunicados que têm sido emitidos pelo Ciatox, com intuito principalmente de alertar os profissionais sobre a conduta no atendimento”, comenta o conselheiro regional de Farmácia pelo estado de Goiás e reitor da faculdade ICTQ, Eugênio Muniz.