Por que cresce tanto a violência contra as mulheres?

Ministra das Mulheres, Cida Gonçalves: “A normalização da misoginia, que é o discurso de ódio contra as mulheres, é um fator determinante”

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A violência perpetrada contra as mulheres é um fenômeno planetário, em que o Brasil figura na sétima pior colocação entre os países. Relatório da Organização Mundial da Saúde (OMS) informa que uma em cada três mulheres (736 milhões) é submetida à violência física ou sexual, em todo o mundo. No Brasil, o número de mulheres assassinadas chega a 1.902 casos, representando uma expansão de 2,6%, no mesmo período. Estes dados foram apresentados pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP), em 2023. A questão da violência contra a mulher será investigada por uma CPI (Comissão Parlamentar de Inquérito), anunciada pelo presidente do Senado, Rodrigo Pacheco, na sessão deliberativa de 12.03.24.

CRESCIMENTO - Por que a violência contra a mulher está crescendo tanto, no Brasil? É possível vencer a cultura patriarcal machista que fomenta a violência? Ou o Brasil está longe de superar o feminicídio e outras manifestações de violência contra as mulheres? Quem responde é Cida Gonçalves, ministra das Mulheres. A revista “Pharmacia Brasileira”, do Conselho Federal de Farmácia (CFF), entrevistou a ministra sobre o assunto, neste mês das mulheres.

SOBRE A ENTREVISTADA  Aparecida Gonçalves ou apenas Cida Gonçalves nasceu em Clementina, interior de São Paulo. É especialista na questão de gênero, em enfrentamento à violência contra mulheres e ativista de defesa dos direitos das mulheres, há mais de 40 anos. Nos governos de Luiz Inácio Lula da Silva e Dilma Rousseff, entre 2003 e 2016, foi Secretária Nacional de Enfrentamento à Violência contra as Mulheres, quando atuou na construção da Lei Maria da Penha e da Lei do Feminicídio. Veja a entrevista com a ministra Cida Gonçalves.

 

Pharmacia Brasileira - Ministra, no Brasil, segundo pesquisa encomendada pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública, em 2023, mais de 18 milhões de mulheres foram vítimas de violência, no ano anterior. A média é de mais de 50 mil vítimas por dia. Outro estudo revela que o número de estupros cometidos contra meninas e mulheres sofreu um crescimento, no primeiro semestre de 2023, da ordem de 14,5%, com 34 mil casos, em relação ao mesmo período de 2022. O indicador é o maior da série histórica monitorada, desde 2019. Já o número de mulheres assassinadas foi de 1.902, representando uma expansão de 2,6%, no mesmo período. A que a senhora atribui esse aumento expressivo da violência?

MINISTRA CIDA GONÇALVES - A normalização da misoginia, que é o discurso de ódio contra as mulheres, é um fator determinante. Nós assistimos, no último período, a um processo de retirada de direitos, de desmonte de políticas públicas, além de uma inferiorização dos corpos e da dignidade da mulher, e relativização acerca do tema do assédio e dos abusos.

O maior número de armas de fogo circulando na sociedade, também, contribui para o aumento dos dados de violência doméstica e feminicídios, como revela o Instituto Sou da Paz numa análise que mostra que o aumento de porte de arma pela população fez crescer a violência dentro dos lares brasileiros. Infelizmente, é dentro de casa que as mulheres ainda estão vulneráveis aos diversos tipos de violência.

 

Pharmacia Brasileira – A cultura patriarcal que favorece os homens, dando-lhes espaço de poder, promovendo a desigualdade de gênero; que subjuga as mulheres, por causa do seu gênero, que as trata como objetos que podem ser usados por eles. Tudo isto constitui a raiz de todos esses problemas? É possível desconstruir essa cultura?

MINISTRA CIDA GONÇALVES - Essa tem sido minha principal bandeira à frente do Ministério das Mulheres. Precisamos que toda a sociedade reconheça como o discurso de ódio e a discriminação contra meninas e mulheres é a raiz da desigualdade de gênero. No Ministério das Mulheres, temos convocado empresas, entidades religiosas, instituições de ensino, governos e a sociedade civil organizada ao debate da urgência de inaugurarmos uma nova cultura de respeito e igualdade.

Em outubro, lançamos a iniciativa Brasil sem Misoginia, que nos impulsiona não apenas a refletir sobre a condição das mulheres, no Brasil, mas também a traçar estratégias e fomentar ações que promovam os direitos das mulheres, a sua segurança e a garantia de uma vida digna. É com esse trabalho estrutural que vamos mudar o comportamento na sociedade.

 

Pharmacia Brasileira - O Brasil está longe de superar o feminicídio e outras manifestações de violência contra as mulheres?

MINISTRA CIDA GONÇALVES - O presidente Lula, assim que me convidou para assumir o Ministério das Mulheres, falou do firme compromisso de diminuirmos os índices de feminicídio, até que se possa dizer que o Brasil é um território seguro para mulheres. Ele fala em termos de buscar a meta do ‘feminicídio zero’. Parece muito difícil de ser alcançado, mas é algo que precisamos colocar como meta constante, porque é uma meta contra a cultura machista, contra a opressão. Devemos ter tolerância zero com a discriminação e a misoginia.

 

Pharmacia Brasileira - Que momento é este em que vivemos, no qual se registra um avanço na relação aos direitos das mulheres e, ao mesmo tempo, o crescimento da violência contra elas?

MINISTRA CIDA GONÇALVES - Em parte, porque os avanços, também, geram uma contraofensiva. Tem sido assim, no mundo todo. Há um tensionamento de forças entre a organização de mulheres e a ascensão de discursos que nos tiram o reconhecimento da dignidade enquanto ser humano. Enquanto o feminismo ganha redes sociais e todas as classes sociais, aumenta, também, o número de influenciadoras conservadoras que defendem que o lugar da mulher é cuidando da família, por exemplo. A conquista dos direitos das mulheres nunca pode parar.

 

Pharmacia Brasileira - Existe uma “ordem” e uma “organização”, invisíveis ou não, na retaguarda dos comportamentos violentos? O crescimento da violência está na esteira dessa onda de violência generalizada? 

MINISTRA CIDA GONÇALVES - O Ministério das Mulheres, em parceria com a Universidade Federal do Rio de Janeiro, divulgou, neste mês, uma pesquisa sobre anúncios misóginos em plataformas de redes sociais, e os dados revelaram que existe, de fato, um financiamento e impulsionamento desses conteúdos machistas. É um tema que me preocupa muito e temos atuado para pressionar que haja uma regulamentação das grandes empresas de tecnologia, a fim de que regras de consumidores sejam seguidas, que a integridade da informação seja preservada e o ambiente online seja seguro para todas as populações minorizadas, como mulheres, pessoas negras, indígenas, LGBTQIA+, com deficiência.

 

Pharmacia Brasileira - O Estado tem falhado na proteção das meninas e mulheres? As políticas públicas adotadas para defendê-las precisam sofrer ajustes? 

MINISTRA CIDA GONÇALVES - As políticas públicas para meninas e mulheres foram alvo de um grande retrocesso, nos últimos seis anos, sofrendo forte desinvestimento e descaso do Poder Executivo. O ano de 2023 foi de reconstrução e de retomada de diálogos e execução de ações que tinham sido paralisadas. 

Estamos reestruturando o Ligue 180 (Central de Atendimento à Mulher), investindo mais de R$ 10 milhões na compra de tornozeleiras eletrônicas para agressores de mulheres para estados e municípios. No dia 19 de março, lançamos um plano com 73 ações do Pacto Nacional de Prevenção aos Feminicídios, envolvendo dez ministérios, hoje, a nossa ferramenta principal na proteção às mulheres. Vamos inaugurar, neste ano, novas Casas da Mulher Brasileira, que oferecem acolhimento e serviços especializados para as mulheres em situação de violência. Importante ressaltar que as políticas para mulheres não são executadas somente pelo Ministério das Mulheres. São transversais e envolvem todo o governo federal.

 

Pharmacia Brasileira - Ministra, fale sobre as desigualdades racial, salarial de gênero e, também, no mercado de trabalho. A promulgação da Lei da Igualdade Salarial está surtindo o efeito esperado?

MINISTRA CIDA GONÇALVES - Dados da Pnad/IBGE revelaram que as trabalhadoras encerraram 2023 com rendimento médio real de 20,8% menor que o dos homens: no 4º trimestre, eles receberam R$3.233 e elas, R$2.562. Sabemos que essas desigualdades são, ainda, mais profundas, quando fazemos o recorte racial.

A Lei da Igualdade Salarial, de julho de 2023, é um importante instrumento na superação da desigualdade de remuneração de mulheres e homens. O governo está preparando o 1º Relatório Nacional e Transparência Salarial, a partir das informações das empresas com 100 ou mais funcionários, o primeiro grande resultado, após a sanção da lei, que nos trará um diagnóstico sobre a desigualdade salarial, no país, com dados oficiais.

Além disso, estamos elaborando o Plano Nacional de Igualdade Salarial e Laboral, que é resultado do Grupo de Trabalho Interministerial coordenado pelo Ministério das Mulheres e Ministério do Trabalho e Emprego, com a participação de outras pastas do governo federal. E uma Política Nacional de Cuidados, tema que está totalmente atrelado à desigualdade de gênero no mundo do trabalho.

 

Pharmacia Brasileira - Em que as mulheres mais têm avançado em seus direitos?

MINISTRA CIDA GONÇALVES - Avançamos consideravelmente em direitos civis, acesso à educação, participação política e na vida pública, espaços no mercado de trabalho. Não podemos negar as vitórias conquistadas com muita luta das mulheres que vieram antes de nós. 

 

Pharmacia Brasileira - A população e os gestores podem acessar as informações sobre a Rede de Atendimento às Mulheres, por meio do Painel Ligue 180, reestruturado pela senhora, no Ministério das Mulheres, com mais de 2,5 mil pontos de atendimento localizados, em todo o País. Entre os pontos, encontram-se as delegacias especializadas e os núcleos ou postos de Atendimento à Mulher, entre muitos outros. As mulheres têm buscado esses órgãos, ou o medo que sentem do agressor as afasta de procurarem apoio?

MINISTRA CIDA GONÇALVES - Uma das nossas grandes conquistas de 2023 foi a reestruturação do Ligue 180 que, em abril, passou a ter um canal de atendimento exclusivo no WhatsApp. Até dezembro, foram recebidas 6.689 mensagens com pedidos de informações ou apresentação de denúncias. A Central de Atendimento à Mulher recebeu, ao longo do ano de 2023, um total de 568,6 mil ligações, o que equivale a 1.558 ligações diárias. Isso mostra que as mulheres têm mostrado confiança no serviço e buscado cada vez mais o amparo da rede de atendimento. Ao mesmo tempo, temos trabalhado com assertividade na divulgação do Canal, com campanhas de utilidade pública e outros materiais.

 

Pharmacia Brasileira - O governo criou, no início de 2023, o Ministério das Mulheres, órgão que, pela primeira vez, tem status de ministério dedicado exclusivamente à pauta das mulheres. O Ministério está alterando o delicado panorama das questões relativas às mulheres?

MINISTRA CIDA GONÇALVES - Neste ano, em meu pronunciamento oficial sobre o Dia Internacional das Mulheres, pude apresentar à sociedade os principais frutos do nosso trabalho como Ministério e a importância da pasta para cada menina e mulher na imensidão deste país. Nós repetimos sempre que quando uma mulher se movimenta, leva consigo toda a estrutura em que está inserida. É isso que estamos fazendo: transformando toda a estrutura para construir um Brasil de igualdade e respeito para todas as mulheres em sua diversidade.

 

Foto: Agência Brasil